quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Filhos do Lixo

Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje.
Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome.
A reportagem era uma história de terror. – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: “A gente tem de sobreviver, né?”.
O relato dessa quase adolescente e o de outras eram parecidos: todas com filhos pequenos, duas novamente grávidas e, como diziam, vivendo a sua sina – como sua mãe, e sua avó, antes delas. Uma chorou, dizendo que tinha estudado até a 8ª série, mas então precisou ajudar em casa e foi catar lixo, como outras mulheres da família. “Minha sina”, repetiu, e olhou a filha que amamentava. “E essa aí?”, perguntou a jornalista. “Essa aí, bom, depende, tomara que não, mas Deus é quem sabe. Se Ele quiser...”
Os diálogos foram mais ou menos assim; repito de memória, não gravei. Mas gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo. Sentadas sobre o lixo. Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo. Criadas como suas mães, acreditando que Deus queria isso.
Quem somos, afinal? Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem. Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer?
Pelo menos, reclamar. Que pelo menos a gente saiba e, em vez de disfarçar, espalhe. Não para criar hostilidade e desordem, mas para mudar um pouquinho essa mentalidade.
Nunca mais crianças brasileiras sendo filhas do lixo, nem mães dizendo que aquela é sua sina, porque Deus quer assim.
Deus não quer assim, Nem os deuses, eles não inventaram a indiferença, a crueldade, o mal causado pelo homem. Nem mandaram desviar o olhar para não ver o menino metendo avidamente na boca restos de um bolo mofado, talvez sua única refeição do dia. E, naquele instante, a câmera captou sua irmãzinha num grande sorriso inocente atrás de um par de óculos cor-de-rosa que acabara de encontrar e assim se iluminou por um breve instante aquela imensa, trágica realidade.

Fonte: Reportagem da Revista Veja de 14/04/2010 de Lya Luft

PARCERIA SEMPRE

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